água

a torneira da cozinha pinga e eu escuto do meu quarto. minha mãe fala disso no café da manhã e meu pai aponta, como que só listando fatos, que essa é uma técnica de tortura. de dia a desgraçada não pinga. de dia a gente se ocupa com jornal e com aula online e séries e jogos bobos que relaxam a mente, junto com outros entorpecentes legais. sim, tudo aqui acontece conforme manda a lei dos homens que são lobos. ninguém aqui falsifica assinatura e muito menos altera o diário oficial da casa depois de publicado. as portas foram fechadas e as roupas recolhidas do varal. as palavras, para algumas pessoas, são como a água que às vezes fica pingando

e pingando

e pingando só pra nos torturar. não faço aqui, que fique bem claro, apologia ou exaltação a torturadores como fazem loucos da cabeça por aí. não. eu quero dizer que outras vezes as palavras sobem pelos ralos e sarjetas e trazem consigo as podridões de toda sorte. às vezes elas caem aos poucos em minha volta e eu não sou atingida porque tenho abrigo, mas posso assistir ao espetáculo que molha uma por uma todas as folhas da árvore. E DAÍ, você vai me perguntar. E DAÍ HELENA que a torneira pinga e as palavras molham e só sobra você de passarinho insone cantando pela casa sozinha, fechando portas, buscando copos e esperando que o sangue saia do seu corpo. vai dizer que tem dias em que chove de madrugada em hora que já é boa pra dormir. e daí eu não sei, só sei que às vezes as palavras lavam a alma e isso me basta.

se eu fosse passarinho eu não escreveria e eu moraria num poema do prévert ou num pé de acerola.

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