nada ficou no lugar

o bem-te-vi me trouxe do afeganistão até minha casa em jaraguá. um livro, uma rede, duas cachorras distraídas. ele virou a cabeça. virou. olhou pra mim. 

pousado na antena, parecia me perguntar qual seria o fruto que aquele galho estranho dá àqueles animais estranhos, sem olhos pintados. entretenimento, arte, internet. sei lá quantos canais de tv, música, distrações, séries, notícias. compras online de livros e fotos.

a minha vista é outra. o bicho tropical pertinho, na antena particular do nosso telhado. ao fundo, o morro e as antenas grandes. por que o morro é diferente da montanha? por que as antenas diferentes se chamam ambas antenas? por que as línguas importam e quanto tempo vive um bem-te-vi? já tão acostumados com os humanos, cantam e cantam tão bonito. estar vivo é suficiente para eles. não precisam de apartamento, precisam de árvores. de pés de abacate, de acerola, de limão. não precisam de música, não precisam de rousseau.

errei. não precisam de música? até parece que eu não me alegro quando os escuto. rebeldes artistas. não se importam com injustiça mas, caridosamente, pousados em cabos elétricos, são capazes de iluminar nossas misérias.

não se importam com os mortos. não se importam com os números. não se importam com a política, com a cotação do dólar. por que a gente é tão viciado em civilização? por que alguém tem que gostar de balé e de mentiras e por que eu fui nascer ali e você aí, onde nasceu?

por que o ar não nos basta? de onde vem a carência de eternizar um singelo passarinho talhando-o com letras ainda mais singelas? já morreu, já não é o mesmo rio.

voa daqui, bem-te-vi. vai se embora da minha cabeça. finalmente eu te escrevi.

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