Marechal


Era uma noite de sábado comum em uma cidade média, industrial, cortada ao meio pelo trem e pela conhecida desigualdade. Jovens com algum grau de privilégio se encontraram no bar para anestesiar o medo da vida e da morte, como é comum a seres inquietos, sociais e perturbados que somos.  Diziam amenidades. Reclamavam do trabalho. Contavam histórias. Não, mas o pior nem foi isso. Comentavam a arte de seu tempo, as séries, os filmes, as músicas, as danças. Ah e essa semana eu ouvi um podcast que falava exatamente sobre isso. Bebiam, fumavam, o suficiente para eles, que não era mais do que para suas referências boêmias e revolucionárias. Sim, porque eles tinham ideias, também. Você sabia que trabalhando por cinquenta anos, todo dia, sem fim de semana, sem gastar nada, ganhando cinquenta e quatro mil por dia, você ainda não seria um bilionário? É um absurdo que existam bilionários no mesmo planeta que gente passando fome. E o que que você pode falar, engomadinho, você nunca passou fome! Graças a deus, respondeu o engomadinho, mais por força do hábito do que propriamente agradecendo.

A tribo foi formada pela vida. Amigos de escola, parceiros de noite, vizinhos, ah aquele ali veio falar comigo um dia achando que eu era a minha irmã. Como era uma cidade tranquila, ao menos para aqueles jovens com privilégio (reconhecido!) de cor e classe, continuaram a noite pelo centro da cidade. Sentaram no banco da praça, contaram piadas, comeram um podrão. Eles conseguem ver, com a devida distância, os fantasmas que moram na rua, que existem mesmo naquela cidade próspera. Eles têm vontade de ajudar, sim, mas também têm medo.

O problema é mesmo que eles não sabem muito o que fazer. Até compram um lanche pro nóia, o coitado também é um ser humano, mas isso não resolve o mal pela raiz.

Param na frente da igreja. Sobem a escadaria. Inebriados e felizes, refletem sobre aquela moral e bons costumes que os influenciou ao mesmo tempo que os jogou contra ela própria. Ou talvez só relembrem algumas das músicas e das avós e eu que esteja colocando reflexões em suas mentes já tão cheias.

Na porta os dizeres da campanha da fraternidade desse ano. Algo sobre ver, sentir compaixão e cuidar. Bonito.

Do outro lado da rua, olha lá Patrícia, tem promoção de armas. Ah para né! É muito conveniente para esse conto uma faixa incentivando a compra de armas logo na frente da igreja... Mas é sério guria, tô te falando.

É muito desrespeito né. Tudo bem que eu não acompanho mais a vó, mas eu acho que a religião tem tanto a ver com amor ao próximo, sei lá, com o valor da vida. Por mais que tenha seus problemas, mas não era pra ser isso?

Olha, eu acho que era. 

Inspiraram mais um pouco da vida, com a beleza de suas contradições, como é normal a noites de sábado. Voltaram para suas casas com a tranquilidade de quem mora em uma das cidades mais seguras do país.

Acordaram no outro dia e aos poucos cada um montou a noite de volta com suas memórias embaçadas. Diálogos vãos, mas que animaram suas almas. A igreja fica bonita iluminada, foi gostoso parar na escadaria, subir, e descer, por deus, eu lembro da gente carregando cartaz pelos degraus? Só de relembrar me dá uma adrenalina.

Barbaridade, a venda de armamento foi parar na porta da igreja e a campanha da fraternidade na fachada da loja de instrumentos de caça e pesca. 

Depois da risada de nervosismo e orgulho ao confirmarem que aquilo não fora um delírio coletivo, aguardavam a repercussão. Seu vandalismo podia parar no jornal, ou pior, na polícia. Mas eles tinham confiança de que os comentaristas perceberiam a crítica ao fetiche moderno pela violência e o verdadeiro pecado que é atrelar um instrumento feito pra matar com religião. 

Ansiosos, queriam comentar o fato. Mas a vó voltou da missa e não falou nada, além de que a igreja estava cheia.

Como assim ninguém viu que colocaram as palavras 'adquira aqui sua arma' com o desenho de um revólver na porta do templo? Ou que a boa mensagem que estava ali foi parar do outro lado da rua, numa loja qualquer? Um cartaz era o elogio da morte, meu deus, e o outro era caridade pura.

Pois aquela cidade média, industrial, cortada ao meio pelo trem e pela conhecida desigualdade, não notou a diferença. No sábado seguinte os jovens saíram de novo, mas ninguém comentou o fato.

Comentários

  1. Que metáfora mais interessante.
    Com as armas buscamos a paz e encontramos a morte. A fé move montanhas, mas não sensibiliza o homem nú de sua própria humanidade.

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  2. Olha só!!! Acontecimentos banais do nosso cotidiano observados por mentes sensíveis podem levar a criações maravilhosas. E muitas outras reflexões sobre a vida. A fé é uma arma para enfrentar as batalhas da vida! Parabéns, Helena!

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  3. "aquela cidade média, industrial, cortada ao meio pelo trem e pela conhecida desigualdade" como você descreveu bem Jaraguá. Que saudade de ler algo que falasse comigo. Obrigada!

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