pra titia


O cheiro de olíbano me transportou para o Rio de Janeiro dos anos 80. Pela primeira vez, eu entrava num restaurante macrobiótico. A fumaça de um incenso japonês dançava a partir do vértice de cima do triângulo que eu via, do qual a vareta era a hipotenusa e cuja altura diminuía tranquilamente, conforme os segundos passavam, sempre mantendo as proporções. Você tinha que ver a minha casa. O sofá eu ganhei da minha tia. A televisão eu ganhei da vó. O bule eu ganhei da sogra. Essa caneca que eu servi o chá, eu ganhei de uma prima, toma cuidado. A história eu emprestei de uma amiga. Peguei sem nem pedir. Não era a casa mais adequada do mundo para crianças, mas um dia a minha sobrinha compreenderia - queira deusa - a sorte que ela tinha de compartilhar o lar comigo, quando me visitava nos verões. Pedia que eu lhe mostrasse os meus livros de capa dourada. Eu gostava muito. E ela, principalmente quando eu lhe pedia que alcançasse um livro de receitas. Manuseávamos folhas amareladas com listas de ingredientes sem qualquer instrução, igual a bisa ou a mãe dela quando as escreveu. Essas medidas a gente nem usa mais, essa palavra já não se escreve assim. A dona Cecília, uma vez que esteve aqui, já disse que minhas receitas estão em códigos, mas todo mundo sabe como fazer um manjar, oras. Ela não sabe como a gente gosta da sua explicação, bisa, que vem acompanhada por histórias de infância ou de ontem, no mercado, quando o leite estava em promoção e a senhora encontrou aquela mulher que fazia curso junto. Logo é seu aniversário, não posso esquecer de mandar uma mensagem. Se eu herdei o dom? De cozinhar ou de contar histórias? Já fiz muito roubando as receitas, que foram dadas como perdidas inicialmente. Fiz fotos e compartilhei com todos os interessados mais tarde, mas imagens computadorizadas não têm o mesmo valor que páginas envelhecidas. Quando estava sozinha, eu não precisava delas. Eu me virava com qualquer coisa que tivesse. Eu me distraía, enrolava a fome e evitava o café o quanto pudesse. Eu não pensava nos filhos. Se os tivesse, quando o fizesse, eu seria diferente. Não levaria tantos homens e mulheres para casa. Varreria mais o chão. Meus vícios cessariam ou esconder-se-iam bem demais para que eu mesma os achasse. Eu pensava era nos sobrinhos, e quando eles me visitassem? Se passassem os verões aqui como eu passava nas minhas tias? Faríamos trilha, iríamos à praia...

Comentários

  1. Você é incrível. Parabéns pela história.

    ResponderExcluir
  2. Com certeza, passaria férias na sua casa, assim como vcs passaram na minha e de outras tias. Adoro as minhas sobrinhas e os filhos delas.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas