Auto retrato de domingo


Sim, antes que você me pergunte. O auto retrato de domingo pode ficar sem hífen e sem dois erres. Pode até ficar para segunda. Não é porque segunda é dia útil ou dia da Lua. É porque na segunda são processados os pensamentos inquietos que me impediram de dormir no domingo. Sim, esse é mais um texto feito na cama, enquanto frases ridículas insistem em não dormir e ficam piando, como passarinhos; enquanto eu não consigo relaxar, porque meu corpo velho range e minha cabeça ferve. É na segunda que os livros podem voltar para o lugar. Ontem eu finalmente li um conto que uma menina me vendeu no gramado em frente à reitoria. Eu lembro que ela disse que qualquer valor a ajudaria pois ela só tinha gasto com a impressão no xerox e eu dei uma nota de dois míseros reais a ela. Depois contei a história para Vivianne e ela me perguntou se o conto era legal. Eu falei que não li e consigo lembrar até hoje a sua risada depois de me perguntar: - Não leu? [inserir a risada da Vivianne aqui]
Pois é, mas cada coisa tem seu tempo, não é? Ontem eu li e é legal, sim. É intenso. É uma boa história com imagens e cheiros interessantes. Se der tempo nessa vida eu ainda serei bem imagética. Eu vou tocar algum instrumento. Eu vou reaprender a desenhar e fazer imagens de outro jeito. Hoje eu só tenho o cabelo ruivo e cacheado da Vivianne, o gramado na frente da reitoria e uma pilha de livros tirados do lugar para oferecer. Livros e outros escritos mais singelos, impressos no xerox. Eu acho difícil escolher algo para ler naquele momento. Minha felicidade clandestina eu deixei em Jaraguá, junto com o Lucas. Eu acho engraçado que meus textos sejam ao mesmo tempo minha herança e meus herdeiros. Eu imagino que após a minha morte, se a Clarice ficar com os livros, talvez em algum domingo ela tome um tempo para abri-los, criando sua história com eles, imaginando se existe alguma razão lógica ou poética para que justo este marcador de páginas esteja neste lugar. Um dois de espadas, uma receita impressa, a foto de uma família feliz incluindo sua mãe ainda criança. Até que temos imagens suficientes sobrepostas à minha análise de possibilidades de coisas para ler e demora a dormir.
Sim, antes que você me pergunte. O auto retrato de domingo só terminou na madrugada de terça. Tecnicalidade. Depois a máquina pegou atestado, e até conseguir outra que suprisse todas as exigências para revisão do texto, já era outro domingo, já era outro retrato.

Comentários

  1. Tomara que a Clarice fique com os livros e toda essa inspiração.

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  2. Passado, presente e futuro sempre nos influenciarão. Amo teus textos Helena.

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