até em salvador há de chover


pobres dos pensamentos que - sem escolha - resistem bravamente assombrando cabeça, porque não puderam se ver por escrito, por falta de caderno ou lápis ou tempo ou sozinheza que quisesse ser preenchida pelo ato. não é preenchida, é substituída. a mente quer seu descanso, calma, e é bom pegar conexões em aeroportos de madrugada porque não tem aquele movimento frenético do dia. a mente não quer se ocupar com enigmas o tempo todo. do tipo qual lado do avião seria melhor pra ver o eclipse, o lado do motorista ou o lado do cobrador? mas será que eu deveria tentar mudar o meu lugar? e escrever é jogo de procurar palavras. até na baía o sol se põe. uma hora mais cedo inclusive. e inclusive lindamente, com as cores que você encontrar. até a narração de jogo de futebol parece cantada acompanhada por esses tambores. ou será essa língua estranha, que é a minha, ou esse acento que é mais cerrado, falado por uma argentina, não o bioma. como é difícil ordenar as urgências! as plantas, o correio. qual correio? o livro encomendado, a carta de um amigo. o sono. a fome. mas qual fome? snack doce ou salgado? a fome escrita justa num pedaço de papelão. sozinha. a casa, as malas, as roupas para lavar. e tem comida em casa? as fotos, as músicas. a mensagem de que cheguei. para quem? o tesão. escrever. mas o que escrever? para alguém? em qual caderno, com qual lápis? cartas? máquinas de escrever. fazer as contas. já nasceu? e as plantas, estão bem? por cima e atravessadas em túmulos de concreto, insistem em crescer algumas vidas, enquanto aquele nome escrito viveu só uma. ou quantas eu pudesse imaginar, enquanto a chuva cai e eu me abrigo na igreja de um cemitério. porque até em salvador há de chover. mas eu não ouso imaginar. e a minha sobrinha, que nasce a qualquer momento! uma carta pra ela. uma máquina que eterniza datas com símbolos e números e a retidez que lhes convêm. convém? confundir padaria com biblioteca enquanto conversa sozinha. azeite de dendê com páprica. até em salvador a chuva há de cessar para que passarinhos abrigados, como eu, possam sair das tocas. e a planta que, morrendo, já deixa flores no seu próprio funeral e ainda oferece chá aos que velam a terra. eu vi aquela criança pequena carregando um saco de latinhas, aos prantos. enquanto outra dormia no avião. que venha com saúde, o resto a gente corre atrás? bichos magros reviram o lixo e homens jogam água para limpar a rua e outros passam sede. segue o seco. chuva pouca. humanidade não tem concha e nem casco e nem casa. mora por aqui.
ainda consegui ver a lua a ver-me ilhada. eu tenho muita é sorte.

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